Acho
que o meu livro ficará pronto. Provavelmente no mesmo dia em que servirem
sanduíche de bacon num bar mitzvah. Ou quando o Emperor deixar às profundezas
gélidas da Noruega para tocar no Festival de Verão de Salvador.
Descontando
os textos impublicáveis, eu tenho algumas mil palavras de
um romance e uma porção de contos escritos para a antologia Meus heróis estão fora da TV. Está bem, não é um título exatamente heavy metal.
Desculpe.
Sei
lá, caro (a) leitor (a). Caso esteja entediado (a), você pode ler meu conto literário chamado A garota que ouvia Guns N' Roses. É bem bacaninha.
A GAROTA QUE OUVIA GUNS N' ROSES
Por Vinicius Oliveira (Mojo)
Desliga
essa merda!, eu
gritava enquanto tentava vencer mais uma página em branco. Nada feito, Daniela
cantava os versos de Nightrain - em seu inglês macarrônico - imitando os gestos
afetados de Axl Rose. O microfone era seu pente ainda sujo de condicionador e a
sua bandana, uma toalha de banho precisamente enrolada na cabeça. Ela demorava
tanto tempo para se arrumar quanto o Guns N' Roses para lançar o Chinese
Democracy. Axl, Slash e Izzy eram os deuses dela. Kurt, Vedder e Staley os
meus. As coisas não poderiam funcionar mesmo.
Eu odiava Guns N' Roses, porque Kurt
odiava Guns N' Roses. O grunge acabou com a festa glam de Los Angeles,
aposentou a maquiagem e apliques no cabelo e toda aquela veadagem regada à
cocaína. Dos rock stars que excursionavam de limusine acompanhados de loiras
peitudas e artificiais sobraram apenas artistas decadentes tocando os antigos
hits mela cueca em barzinhos sujos para vinte velhotes anacrônicos. Cobain os
colocou em seus devidos lugares: no ostracismo.
Você
vai desligar isso, Daniela? Ou vou ter que mandá-la de volta pra casa da sua
mãe? Lá você pode ouvir esse gordo decadente à vontade junto com a velha. Ela riu e continuou a incorporar o
espírito do jovem e cheiradaço Axl.
Quando começou Sweet Child O' Mine, eu
achei que iria vomitar. A garota ficou em chamas, um delírio adolescente que -
sou obrigado a confessar - era muito engraçado de olhar. É claro que mantive a
postura de cara durão porque, caso contrário, ela perderia completamente o
respeito por mim. Eu era um cara do grunge, camisa de flanela e converse All-star
com o logo do Nirvana desenhado artesanalmente. Por favor, me dê um pouco de
heroína.
Ela não me respeitava. Eu praticamente
decorei por tabela todos aqueles versos de lirismo pobre do Guns N' Roses.
Nunca ouvi os caras por vontade própria. Até admirava (um pouco) o Slash. Não
tem como negar que o guitarrista tem feeling. Ainda se opôs à megalomania do
Axl Rose e zarpou da banda. Sujeito de atitude, porém, no gênero musical
errado. Vá para Seattle, Slash.
Em dado momento quando o cabeludo da
cartola mandava ver o famigerado solinho melódico de O' Mine, Daniela
ajoelhou-se no tapete e começou a imitá-lo em movimentos perpendiculares de air guitar. Levei as mãos à boca, franzi
a testa e fingi não me importar com a cena. Eu estava bastante irritado, porque
precisava terminar um texto e não havia nenhuma inspiração. O aluguel dependia
disso e ela não estava nem aí. Em condições normais eu não ligaria, visto que
até gosto de escrever ouvindo música, mas seria complicado aguentar
aporrinhação de senhorio. De novo. Já fui mais inconsequente.
Levantei rispidamente, apanhei minha
camisa de flanela mofada do armário e saí batendo porta. Por um instante achei
que ela tinha desligado o som, mas quando pisei na calçada - e parei para
acender o Hollywood - escutei os primeiros riffs de Welcome To The Jungle. Filha da puta, pensei. Se for parar para
pensar, Hollywood fica em Los Angeles, o berço maldito daqueles caras. Vou
trocar de marca de cigarro.
Andei alguns quarteirões em busca de
um bar aberto. Enfiei-me num moquifo de iluminação similar a de um bordel e as
coisas estavam aparentemente silenciosas. Perfeito. Havia dez pessoas
espalhadas em cadeiras de madeira envelhecida. Pedi uma dose de Jack e joguei
minhas tralhas no balcão. Caderno escolar velho, duas canetas e alguns
rascunhos. Eu finalmente poderia escrever em paz. E bêbado.
O texto estava fluindo e outras doses
de uísque pagas. Senti subitamente a falta da Daniela, quer dizer, do humor e
cheiro dela. Tinha trabalho a ser entregue que não seria interrompido por
lampejos amorosos. E ela estava agindo cada vez pior. Ou não. Eu estava
envelhecendo com certa amargura emergindo das entranhas. Não tem jeito, a vida
fode todos nós.
No meio de mais um parágrafo, pensando
numa símile engraçada, as luzes do bar apagaram. As dez testemunhas aplaudiram
incessantemente. Um sujeito de cabelo loiro, armado e repleto laque apareceu
num palco improvisado no fundo do bar bem ao lado do banheiro. A calça de couro
velho e bandana de bandeira americana estampada não me deixavam mentir. Era um
sobrevivente de L.A. Não podia ser.
Ele começou agradecendo a plateia
dizendo que não ligava para a quantidade de público. Ínfima, eu acrescentei. Eu sei que os melhores estão aqui nessa
noite, declarou no microfone para delírio dos presentes. Conversinha mole.
O cara apontou para mim no balcão como
se tivesse me dedicando a primeira canção. Para ser simpático, saudei-o
levantando o copo de uísque. Devolveu com um sorriso e desenhou os primeiros
acordes. Eu conhecia aquela melodia kitsch: era November Rain. Vendi minha alma
ao diabo.
Pensei na Dani e em como daríamos
risada enchendo a cara juntos naquele boteco. Senti uma pontada de dor no
coração. Eu era um babaca.
O sujeito terminou November Rain
imitando o barulho de chuva. Nada mais clichê. Mas meus olhos estavam cheios de
lágrimas e meu coração, de arrependimento. Aplaudi de pé. Acho que eu gostava
de Guns.
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